A franquia Jogos Mortais, no original Saw, é icônica quando se trata de filmes de terror, principalmente do gênero gore, mas não se trata somente de violência, o que chama atenção em Saw tal como prende os telespectadores é o terror psicológico entranhado em sua narrativa.
Jogos Mortais não é mais um filme/franquia com o mero intuito de assustar e chocar, utilizando excessivamente de gore e jumpscare, mas um filme que trás reflexões e nos faz refletir - em meio ao caos - do início ao fim, levando o ser humano e o seu instinto de sobrevivência ao extremo, John Kramer, de uma forma igualmente extrema, realiza uma engenharia bem articulada, de modo com que todas as peças se encaixem.
O diretor do primeiro filme, James Wan, soube trabalhar bem esse quesito, não há como negar que Jogos Mortais é um filme com extrema violência gráfica, porém não se trata apenas disso, dentre muitos exemplos é possível citar as reviravoltas na trama, a forma como os personagens se conectam, a relação entre os mesmos e a relação conturbada de John Kramer (Jigsaw) consigo mesmo, assim como com determinados personagens (seus seguidores), e o fato de estar em fase terminal de câncer.
Não podemos esquecer sua filosofia de valorizar a vida, o que soa contraditório, em uma franquia onde o que mais vemos são mortes, porém podemos analisar a razão disso mais tarde, nada o que acontece na narrativa é por acaso, cada personagem, cada ação e reação interligam-se em determinado momento, mas ao mesmo tempo deixando brechas para que a trama possa continuar a se desenrolar. Vida e morte andam lado a lado.
Os filmes não seguem ordem exatamente cronológica, por exemplo, o quarto filme acontece no mesmo momento que o terceiro, como que sobrepostos.
Em Saw os eventos não são exatamente cronológicos, mas envolvem uma linha do tempo caótica na qual vamos ligando os pontos no decorrer do filme, não da forma convencional, mas através de pequenos detalhes, que em conjunto, formam um cenário.
A questão é que John Kramer não é apenas um serial killer que assassina suas vítimas, em uma fala do personagem deixando claro, ele despreza assassinos, em seu jogo, Jigsaw dá algo as vítimas que outros tipos de assassinos não dão, o poder de escolha.
Não são apenas muitos filmes com narrativas bem articuladas, como muitas nuances para abranger a narrativa de uma forma geral, englobando todos os filmes da franquia, precisarei de uma análise mais minuciosa acerca de cada obra, portanto, as explorarei de forma geral, para posteriormente, partir para uma análise das obras individualmente, dividindo essa análise em partes.
O oitavo filme da franquia, Jigsaw, se passa cronologicamente antes do primeiro filme, como ainda não assisti os três últimos filmes da saga (irônico para quem assiste a saga desde a infância), estou revendo aos poucos os filmes para realizar uma análise mais concisa, inicialmente enfocarei conceitos mais abrangentes.
Começando pela narrativa, que se interliga de uma forma elaborada a deixar pontas soltas propositalmente, para em seguida, juntá-las, em uma velocidade de informações e reviravoltas - típico dos finais das tramas - que mostra o contexto geral que vai se desenrolando em pequenos detalhes entre uma take e outra.
Ceixei acima a cena final do primeiro filme, caso queiram entender melhor do que estou falando, mas comecemos pelo primeiro filme e seu protagonista, que deixou o legado para os filmes posteriores mesmo após a sua morte.
DE JOHN KRAMER A JIGSAW E SEUS JOGOS
Para compreender bem a trama, é necessário entender primeiramente o seu protagonista, no caso John Kramer, o seu nome real, Jigsaw é o nome dado ao mesmo pela mídia após dar início aos seus jogos mortais, nome esse que não é de seu agrado.
No primeiro filme Saw de 2001, não somos apresentados a face de John Kramer - com exceção do final, no auge do clímax percorrendo as veias, como vemos na cena um pouco acima - inicialmente somos apresentados apenas ao Jigsaw e de forma indireta, através de outros personagens atrelados ao mesmo.
Em resumo, no primeiro filme temos dois personagens (vítimas), o Dr. Gordon (que tem relevância na história da franquia, inclusive em filmes bem posteriores, como o sétimo) e Adam (interpretado pelo roteirista do filme, Leigh Whanell).
Ambos estão em uma armadilha de Jigsaw acorrentadas pelos tornozelos em um banheiro, foi inserido uma espécie de veneno no organismo dos mesmos e eles precisam passar por testes para sobreviver, obedecendo as regras do jogo que são deixadas através de pistas, estas dadas por meio de gravações de fitas, com uma voz grave e adulterada - vale citar o boneco sinistro e lendário associado a imagem do Jigsaw, que em outra ocasião, abordarei, o valor simbólico que o mesmo possui.
Em paralelo ao cenário claustrofóbico do banheiro, temos uma ação exterior, tal como memórias e diálogos em formas de flashback que vão nos orientando acerca do que está ocorrendo na trama, tal como outros personagens que possuem vínculos com as vítimas, como a própria família do Dr. Gordon, inserida no jogo de uma forma secundária, como consequência de seus atos, e influenciando os mesmos durante o jogo.
Em um determinado momento, uma das vítimas, o Dr. Gordon em uma conversa com Adam, relata saber de quem tinha colocado eles ali, o que abre espaço para a cena de um flashback (uma memória) relacionada a John Kramer, antes de se tornar o Jigsaw, como possuindo um câncer inoperável no cérebro, o Dr. Gordon já havia o tido como paciente, razão pela qual ele compreende estar ali.
A forma como a obra começa já nos gera um senso de confusão, quando Adam acorda dentro da banheira cheia d'água, tirando a tampa do ralo e deixando escorrer pelo encanamento algo importante mais tarde para a sua salvação, a chave.
Jogos Mortais funciona dessa forma, exatamente como um quebra cabeças na qual as peças aos poucos vão se juntando, por essa razão o nome Jigsaw, quando suas vítimas não passavam nos testes, o mesmo tirava um pedaço de suas peles no formato de um quebra-cabeças utilizando um bisturi, o que é típico do padrão de um serial killer, tal como um troféu ou até mesmo uma assinatura, de forma que a perícia possa correlacionar o acontecido ao Jigsaw, o que mais tarde John Kramer fala em tom de sarcasmo, que nunca gostou desse nome, por limitar demais, afinal, o seu jogo era algo muito mais abrangente, para ele soava realmente como um jogo que era levado a sério, em sua mente ele encara tudo aquilo como uma forma real de reabilitação.
E nesse ponto de reabilitação, falarei sobre isso mais para frente, os acontecimentos em sua vida que o levaram a chegar até tais extremos, não como justificativa, mas como um legado a ser deixado antes de sua morte, que ressignificou a forma como o mesmo passou a encarar a vida, assim como os seu seguidores.
HELLO ZEPP - FIM DE JOGO - PORQUE ESTÁ LENDO ISSO?
Ao final do primeiro filme, após muito suspense, tensão e sangue, temos um plot twist que dá sentido a todo o filme, quando John Kramer se apresenta de uma forma que jamais imaginaríamos, unificando os eventos anteriores e nos permitindo compreender a razão de todas aquelas regras, tal como o ciclo de ações e reações envolvendo não apenas os dois personagens no banheiro, mas todos os personagens da trama.
Essa conclusão tensa e densa, onde a fatídica trilha sonora "Hello Zepp", composta por Charlie Clouser tem início, uma atmosfera de pura tensão a medida em que visualmente diversas cenas do filme se misturam, em um caos que ao invés de bagunçar, trás clareza, ligando todos os acontecimentos e nos fazendo entender o que está além daquilo que não estávamos notando.
Como se estivéssemos enxergando um ponto que vai aumentando, até que percebemos pequenos detalhes minúsculos e paralelos aquele ponto que fazem toda a diferença para o contexto geral, assistimos às obras, do início ao final, para somente no final, o início ter um sentido em um pico de clímax, antes disso, tudo soa incerto e duvidoso, a maioria dos filmes são assim, porém quando se trata de Jogos Mortais é algo bem específico, o mínimo detalhe que, por vezes, passa batido, ganha tremenda relevância após.
Particularmente, o terceiro filme é o meu favorito justamente pelo fato de mostrar pontos em específico da vida de John que nos filmes anteriores não foram mostrados, como o envolvimento de Amanda Young não apenas nos jogos, mas também emocional em relação a Jigsaw, quase uma figura paterna.
Mas, de fato, o que realmente fez com que John Kramer se tornasse o Jigsaw que conhecemos? Não é uma pergunta simples, são diversos fatores, que como disse anteriormente, não apresentados ao longo da franquia, não há como não dar spoilers sobre a trama nesse ponto, são acontecimentos que vão sendo apresentados, nenhum plot twist, apenas fatos acerca da vida do protagonista dos insanos jogos.
John Kramer era um engenheiro com uma vida que parecia estável, casado com Jill Tuck - outra personagem importante na franquia, por ser a companheira de John, ela é quem melhor o conhece antes de se tornar um assassino em série, Jill trabalhava em uma clínica de reabilitação para dependentes químicos.
O mesmo demonstra um senso de ética e valores morais acentuados, discernindo bem entre o certo e o errado, sendo também um homem inteligente e peculiar, por assim dizer, o mesmo apoia Jill em seu trabalho, não apenas indo buscá-la, como participando de suas atividades. Em um determinado momento, Jill descobre que está grávida, e ambos ficam felizes com a notícia, John sendo uma pessoa extremamente metódica, planeja de forma meticulosa como será a vida dos dois a três, chegando até mesmo a calcular astrológicamente o nascimente da criança, porém como toda boa história, uma tragédia é eminente...
Em uma noite onde John espera Jill fora do hospital, após dar um pequeno sermão a uma prostituta que o aborda em seu carro, ele percebe algo estranho, um dos pacientes correndo de dentro do prédio, o mesmo havia invadido o lugar para roubar sem saber que Jill ainda estava lá, no que, abrindo bruscamente a porta para fugir, acaba acertando o abdômen de Jill, que grávida, acaba por perder o bebê, a partir desse momento percebemos que o comportamento de John começa a mudar, um ponto em específico que posso citar é quando ele fala para Jill que não é possível ajudar aquelas pessoas, elas mesmas precisam se ajudar já antecipando o que viria adiante.
Como se a perda do filho não bastasse, John, após realizar alguns exames descobre que possui um tumor inoperável no cérebro, e não há nada que possa ser feito - podemos ver posteriormente um médico e uma médica responsável pelo tratamento de John, a segunda agindo de uma forma fria e distante, personagem o terceiro filme da franquia, o primeiro é o Dr. Gordon do primeiro filme, já a outra médica terá um papel importante no terceiro filme, para sobreviver ela precisará manter John vivo até o final dos jogos.
John, não suportando o peso da realidade despencando sobre si, o mesmo resolve acelerar em um desfiladeiro e igualmente despencar, optando por tirar a própria vida, porém, ele sobrevive, as ferragens que perfuram seu corpo não atingem nenhum órgão vital ou artéria, o que é irônico, como diz o personagem, que seu corpo foi capaz de resistir a uma queda de tantos metros, mas não foi capaz de resistir às células cancerígenas.
Na minha perspectiva, a perda de seu filho desestabilizou não apenas John, mas também Jill - consequentemente - o relacionamento dos dois, tendo valores bem estabelecidos, esses acabaram por começar a entrar em conflito, em outras palavras John estava perdendo a fé na humanidade, não no sentido literal, mas de um ponto de vista em que não se é possível fazer nada em relação a alguém se primeiro ela não fizer por si mesma.
A morte do bebê o levou a um extremo, a quebra de expectativas e planejamentos, tal como problemas e seu próprio relacionamento, em seguida, ao receber o diagnóstico de um câncer, se viu diante da morte, duas vezes, ao entrar no consultório e ao despencar com o carro de uma ribanceira, em uma morte simbólica, o John que sobreviveu a tentativa de suicídio, na verdade, morreu naquelas ferragens, a partir daquele momento nascia o personagem que conhecemos como Jigsaw.
Tendo ciência da fragilidade e do valor da vida de uma forma extrema, aquele senso de discernimento entre o certo e o errado se tornou uma coisa só, a linha entre o bem e o mal é tênue, e para Jigsaw - como acontece com muitos personagens - já não existia mais diferença entre o que se é certo e errado, abandonando sua personalidade, deixando o seu eu de lado, desde o cargo como engenheiro, seu papel como marido e até mesmo suas finanças, para ele essas coisas mundanas perderam completamente o sentido, antes de morrer ele precisava ensinar as pessoas o valor da vida, e o fez isso as colocando cara a cara com a morte com uma escolha simples, viver ou morrer, um jogo da vida.
No início, quando falei que o gore não era a única coisa que chama atenção de muitos para a franquia, me referia a isso, a uma riqueza de detalhes, os filmes são repletos de cenas de embrulhar o estômago de pessoas mais sensíveis, porém não se trata apenas de chocar, o enredo permeado pela tensão e a inter-relação entre os personagens cria uma atmosfera que levou o filme a um grande patamar do cinema de terror.
No que diz respeito ao processo criativo do mesmo, o orçamento do primeiro filme foi baixíssimo para os padrões de Hollywood, sendo investidos cerca de U$ 1,2 Milhões de dólares para bater mais de U$ 100 milhões de dólares em bilheterias te todo o mundo. James Wan, o diretor não possuia muito recursos, então, para apresentar a ideia o filme, juntamente com Leigh Whanell (que interpreta o Adam do primeiro filme) fizeram um curta-metragem de 7 minutos, esse curta foi a inspiração para a elaboração da obra, que serviu como inspiração para diversas obras posteriores do gênero, Jogos Mortais influenciou diversos outros filmes do gênero, como O Albergue.
Na próxima parte abordarei a franquia de uma perspectiva mais minuciosa, abrangendo as obras de formas individual, a sua cronologia, tal como as nuances presentes na trama e como as coisas vão se interligando, antes preciso terminar de assistir os dois últimos filmes, tudo em seu tempo, o que é para acontecer, como diria Einstein, já aconteceu.
Por: David Alves Mendes | Mortalha Cult ©



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